The Wayback Machine - https://web.archive.org/web/20140204145013/http://historiaccfl.blogspot.com/

1 de outubro de 2013

Condições de uso

Pede-se a todos os leitores que atentem ao seguinte.

Aos conteúdos aqui publicados aplica-se a legislação contida no Código do Direito de Autor. Em particular, nada pode ser reproduzido sem autorização escrita da minha parte (Artº 68º, nº3); citações e adaptações têm necessariamente de incluir o meu nome e o desde blog (Artº 68º, nº2, alíneas g) e i) e Artº 76º, nº1, alínea a).

Os meus contactos e informação pessoal estão facilmente acessíveis através do link para o meu perfil (à direita).

27 de setembro de 2013

Fontes & agradecimentos

Para a despedida, quero aproveitar para agradecer às várias pessoas que ao longo dos anos contribuíram com dados, factos, referências ou simplesmente histórias que ajudaram a completar ou dar mais cor a vários dos textos neste blog. São elas: o Paulo César; o Ricardo Moreira; o Luís Howell; o Rafael Santos; o pessoal da Biblioteca Nacional; os funcionários do Arquivo da Câmara Municipal de Lisboa, núcleo do Arco do Cego; os funcionários do Arquivo do Instituto da Mobilidade e dos Transportes Terrestres; e as várias pessoas que sabem quem são e que me pediram explicitamente para nunca as referir como fontes.

Procurei garantir que as informações disponíveis nos textos correspondem todas à verdade, contrariamente ao que infelizmente se verifica na maioria dos livros publicados sobre a história da Carris. Para não pesar os textos, evitei enumerar detalhadamente as referências em que me baseei (mas estou disponível para responder a quaisquer perguntas nesse sentido); eis a lista.

  • Brochuras, plantas e guias informativos da Carris, editados entre 1892 e 2002 (para informação sobre percursos, paragens, horários)
  • Site da Companhia Carris de Ferro de Lisboa (onde a empresa disponibiliza informação desde 1997)
  • Espólio do futuro Museu da Carris, entretanto tornado inacessível, que consultei entre 1991 e 1992
  • Jornais, nomeadamente: Diário Popular (1942-1979); Diário de Notícias (1901-1902; 1906; 1922; 1944; 1960; 1987); Diário de Lisboa (1921-1922; 1936; 1975); A Capital (números soltos entre 1973 e 2001)
  • “Os Transportes Públicos de Lisboa entre 1830 e 1910”, de António Lopes Vieira (um excelente documento sobre a electrificação da rede, com uma qualidade invulgar nos textos sobre este tema)
  • Correspondência do Serviço de Transportes da Câmara Municipal de Lisboa (1875-1888 e 1901-1910)
  • Actas da Comissão Executiva dos Transportes de Lisboa (1975-1993)
  • Muitas horas de conversas pessoais com variadíssimas pessoas

Falta obviamente na lista o Arquivo da Carris, a que tentei por diversas vezes aceder sem que tenha sequer obtido uma resposta. Contudo, posso garantir que os autores da maior parte dos livros que o citam também não o consultaram: as informações citadas estão erradas e o documento que as contém é um resumo batido à máquina da história das carreiras de eléctricos, datado de 1958, que também me foi fornecido pelas Relações Públicas da empresa em 1992. Dificilmente os documentos do Arquivo da Carris referirão carreiras de eléctricos em ruas que só seriam construídas vinte anos depois, ou contradirão todas as notícias de jornal publicadas (para não falar dos anúncios pagos pela empresa). Pode ser que um dia no futuro alguém competente consiga aceder a esses dados e completar esta história.

31 de agosto de 2013

13, 14, 15, 15A, 15A e 15B: Os eléctricos de Belém, Algés, Dafundo, Cruz Quebrada e Estádio (III)

A evolução do eléctrico 15 ao longo dos anos oitenta foi um pouco ao contrário da das restantes carreiras. Abandonado o plano de eliminação da rede de eléctricos, foi no início desta década que se começou a falar num outro – o da sua modernização, com a introdução de eléctricos rápidos (à semelhança da prática em várias outras cidades europeias).

Contrariamente à maioria das restantes, Lisboa não é contudo uma cidade plana. Esta característica tem sido, ao longo das décadas, determinante na sobrevivência dos carros eléctricos: garantir por outro meio o serviço assegurado em particular pelas carreiras da Graça, Estrela/Camões e São Tomé sempre foi um quebra-cabeças que ninguém conseguiu resolver. Em contrapartida, no grande eixo ribeirinho entre Algés e Moscavide, não só o terreno era plano, como havia algum espaço livre e amplas vias para construir linhas dedicadas a um meio de transporte de maior capacidade – e uma alternativa barata à linha de metropolitano que estivera originalmente prevista.

Assim, começou nessa altura a discutir-se a possibilidade de substituir os vários eléctricos do eixo de Belém, sempre insuficiente para a procura, por eléctricos rápidos, com muito maior capacidade de passageiros e substancialmente menos tempo de percurso. Embora os projectos originais tenham ficado parados devido à falta de dinheiros públicos disponíveis, a evolução do 15 nesta década começou a preparar o caminho para pôr o projecto em marcha.

Logo no Verão de 1982, ainda durante o encurtamento ao Dafundo, a carreira 15 foi generosamente reforçada, fruto de uma reorganização generalizada da rede, em que para além da eliminação da circulação de São Bento se assistiu à concentração dos meios disponíveis à noite e ao fim-de-semana em menos carreiras, mais frequentes. Assim, no eixo de Belém, o 16 e 17 passaram a terminar o seu serviço às 21h30 aos dias úteis e às 14h30 aos sábados, não circulando aos domingos e feriados – no caso do 16, retomando a prática que vigorara até 1966. Em contrapartida, a frequência do 15 passou para os dez minutos à noite, cinco a seis aos sábados, e sete aos domingos e feriados.

Com o restabelecimento do terminal na Cruz Quebrada no ano seguinte, o horário do 15 foi ligeiramente ajustado, e ao longo dos anos oitenta a carreira sofreu pequenos cortes de oferta à medida que a aquisição de autocarros novos e com maior lotação permitia reforçar o 14 e o 43, que o complementavam. Contudo, a restruturação de serviço nocturno de Setembro de 1987 trouxe novamente esta carreira para um lugar de protagonista: o 15 foi novamente reforçado no período nocturno, passando o terminal a situar-se na Praça da Figueira; e, numa tendência claramente contra-corrente, ficou único responsável pelo serviço nocturno ao longo do seu eixo, substituindo os autocarros 14 e 43.

Os anos seguintes foram de ajustamento, com a redução de oferta a acentuar-se à medida que a situação económica do país se desafogava rapidamente e que a circulação automóvel em Lisboa conhecia melhorias como não se viam há décadas. Como resultado, para além da transferência de passageiros para o transporte individual, a melhor regularidade e fiabilidade do serviço de autocarros contribuíram para tornar este meio o preferido de muitos passageiros – e a aposta da empresa. No início de 1993, a frequência do 15 tinha descido para os sete minutos em hora de ponta, nove no corpo do dia, sete a oito ao fim-de-semana e dezasseis no período nocturno – ainda superior aos anos quarenta, mas agora já sem o reforço do 16, definitivamente suspenso em 1991.

Em contrapartida, a 6 de Junho de 1992 o 15 deu mais um passo na recuperação do serviço que perdera nos anos quarenta, com o prolongamento à Praça da Figueira a passar a vigorar também aos fins-de-semana. No final do ano seguinte, a 14 de Dezembro de 1993, este passaria a ser o seu terminal oficial durante todo o período de funcionamento, coincidindo com a supressão do eléctrico 17 em toda a extensão do percurso sobreposto com o 15 – isto depois de, em Novembro de 1992, a carreira ter trocado a raquete ocidental da Praça do Comércio pela oriental, sendo criada uma paragem conjunta do 15, 17 e 18 entre a Rua Augusta e a do Ouro.

A primeira metade dos anos noventa foi um período complicado para a carreira, com o início das obras de transformação da linha para acolher eléctricos rápidos – o plano dos anos oitenta fora finalmente posto em marcha. Assim, entre 1991 e meados de 1993 deu-se a reconstrução da Rua da Junqueira, sendo não apenas substituída toda a linha de eléctricos, mas também criado um corredor de transportes públicos em toda a extensão desta via. As paragens do eléctrico foram novamente redefinidas, com o 15 a perder ao todo duas paragens em cada sentido entre Santo Amaro e Belém. Em paralelo, entre 1992 e o final de 1993, teve lugar a reconstrução da Avenida 24 de Julho, essa um processo bem mais complexo, mas que incluiu também uma adaptação semelhante do corredor dos eléctricos (que passou contudo a acolher autocarros e táxis, contra todas as regras). Para além da eliminação das agulhas de Santos e da Rocha e da ligação ao eixo ribeirinho interior no primeiro daqueles locais, o 15 perdeu igualmente duas paragens entre o Cais do Sodré e Alcântara, ficando com um percurso onde os novos veículos poderiam de facto circular a velocidades bem superiores ao habitual. Num terceiro plano, aproveitando a reconstrução da Praça Afonso de Albuquerque, foi refeita a linha entre o final da Rua da Junqueira e Belém, incluindo a adaptação da raquete de Belém. Em Novembro de 1994 teve finalmente lugar a reconstrução da linha na Baixa, nomeadamente entre as praças da Figueira e do Comércio.

Os novos eléctricos chegaram em Fevereiro de 1995 e começaram a circular na Páscoa desse ano, reforçando o 15 entre a Praça da Figueira e Belém. Devido à má gestão do concurso para fornecimento dos novos veículos, acabaram por só ser adquiridas dez unidades em vez das trinta previstas, e toda a filosofia da reorganização do serviço de eléctricos naquele eixo acabou por ficar posta de parte. Os eléctricos rápidos partilhavam a linha com eléctricos lentos ao serviço do 15, não os podendo ultrapassar, e a sua velocidade ficava assim condicionada; enquanto os abundantes carros do 18 só complicavam mais as coisas entre o Calvário e a Praça do Comércio.

É um facto pouco conhecido que nesta fase inicial as viagens dos eléctricos rápidos não faziam na realidade parte do horário do 15, estando antes organizadas numa carreira distinta: o 15A. Seguindo a filosofia da rede de eléctricos, porém, esta identificação só era usada a nível interno – sendo contudo visível nas chapas da carreira – e as viagens curtas do 15 não apareciam sequer no horário; em contrapartida, a carreira tinha formalmente visto a sua frequência oficial bastante reduzida – o que não surpreende se pensarmos que, entre a Praça da Figueira e Belém, o serviço estava ser “clandestinamente” reforçado por eléctricos com mais do triplo da capacidade dos salões do 15.

Não obstante os problemas, o processo de adaptação da linha do 15 para eléctricos rápidos continuou nos anos seguintes, com as obras de reconstrução do troço entre Belém e Algés, uma nova adaptação da raquete de Belém (que passou a ter agulhas de ligação às linhas de e para Algés), o levantamento dos passeios na Rua de Pedrouços e uma nova reorganização de paragens, desta feita entre o final da Rua da Junqueira e Algés. A 12 de Junho de 1996, foram suprimidas mais duas paragens da carreira naquele troço, ao mesmo tempo que a emblemática paragem da Rua de Belém (da qual ainda restam as ilhas) era abandonada.

Por esta altura o 15 tinha deixado outra vez de ir até à Cruz Quebrada. A 23 de Janeiro de 1996, mais uma duma série de fortes chuvadas em Lisboa pôs outra vez em risco a linha no Dafundo, com a ameaça de desmoronamento do muro do costume. O serviço a partir de Algés passou provisoriamente a ser assegurado por autocarros; e a 15 de Setembro este modelo de exploração oficializou-se, com a criação da carreira 76. Ao fim de mais de noventa anos, era assim desactivada um dos troços mais antigos da rede de eléctricos de Lisboa.

Objectivamente, a substituição do 15 por autocarros entre Algés e a Cruz Quebrada veio resolver um problema complicado: o da implementação do serviço de eléctricos rápidos naquele troço. Sendo praticamente todo o trajecto realizado numa estreita rua com uma faixa em cada sentido e sem alternativas para o trânsito geral, a criação de um corredor reservado era completamente inviável; enquanto a manutenção da circulação nas condições em que se efectuava traria um tempo de percurso que inviabilizava a exploração da carreira com apenas dez veículos. Assim, o encurtamento oficial do 15 a Algés trouxe consigo uma série de vantagens – não menos para a população do eixo do Dafundo, que se por um lado passou a ter de fazer transbordo, em contrapartida ganhou um transporte mais rápido, mais fiável, e que, ao fim de apenas um ano, foi prolongado à Faculdade de Motricidade Humana, satisfazendo um desejo que o eléctrico nunca conseguira realizar.

Ainda em 1996, o serviço do 15 e 15A foi redesenhado, passando os eléctricos rápidos a circular entre a Praça da Figueira e Algés com uma frequência de sete a dez minutos e os reforços até Belém a serem realizados por carros pequenos remotorizados, com capacidade para cinquenta passageiros, em viagens alternadas que inicialmente se realizavam apenas à hora de ponta mas que, em 1998, passaram a circular durante todo o dia.numa medida que não vingou: em Abril de 2000, o horário antigo foi novamente reposto.

A mudança de século foi conturbada, com o acidente nas obras de construção do Metropolitano no Terreiro do Paço a expor a má qualidade do projecto de transformação da carreira. A eliminação dos carros bidireccionais na segunda metade dos anos noventa levou à remoção de praticamente todas as agulhas de inversão; e como resultado o 15 ficou reduzido a meia dúzia de possíveis terminais para encurtamentos, quer por motivo de atraso, quer de perturbações na circulação. Em particular, entre a Praça da Figueira e Santo Amaro não havia um único ponto onde os carros pudessem inverter a marcha, fruto do aberrante levantamento da linha circular no Cais do Sodré. Já no século XXI, alguém na Carris finalmente acordou e a agulha necessária para fechar o círculo foi restabelecida.

Em 2001, o serviço nocturno do 15 passou a funcionar com eléctricos pequenos, com chapa de 15A, o que levou a um aumento da frequência da carreira neste período. Mas os tempos áureos da carreira estavam a chegar ao fim, e no Verão de 2004, à mistura com os ajustes no início e fim do Campeonato Europeu de Futebol que se realizou em Lisboa, o 15A desapareceu definitivamente e o 15 passou a funcionar oficialmente só com carros articulados durante todo o seu período de funcionamento.

Oficialmente, entenda-se; porque a circulação da carreira nunca conseguiu ser aquilo que fora propagandeado devido à partilha dos corredores de circulação com outras formas de transporte. Fora todos os encurtamentos provisórios devido a toda a espécie de problemas, a circulação do 15 era especialmente afectada pelo atravessamento da Baixa, sendo difícil de entender as razões para a manutenção daquele terminal depois da abertura do Metropolitano no Terreiro do Paço, em finais de 2007. A nível de veículos, a situação não era melhor, sendo frequente haver chapas de 15 realizadas por eléctricos pequenos ou mesmo por autocarros (!) – descurando a questão de se estarem a substituir 210 lugares por 56 ou 90. E se a certificação de qualidade da carreira, obtida a 22 de Fevereiro de 2006, foi precedida de um ajuste do horário à procura registada, com o reforço da oferta no ano que o precedeu e o restabelecimento dos eléctricos pequenos no período nocturno, o facto é que as condições de circulação do 15 continuaram sempre a ficar bastante aquém do desejável.

Com os cortes impostos pelo Governo a partir de 2011 a situação só se agravou, sendo a frequência do 15 novamente reduzida no início de 2013, para níveis semelhantes aos de 1995 (mas agora sem reforços), ao mesmo tempo que os problemas de manutenção dos veículos se vinham agravando e passara a ser demasiado frequente ver os carros pequenos a fazerem o serviço supostamente dos eléctricos articulados. Pode ser que o futuro traga dias melhores; mas no seu 112º aniversário o eléctrico 15 está a assistir a mais uma crise nos transportes de Lisboa. Contudo, se a História nos ensinou alguma coisa, foi de que a todas estas crises o 15 sobrevive, renasce, e sai delas muitas vezes em melhores condições do que nelas entrou. A primeira carreira de eléctricos de Lisboa é também uma das poucas que sobrevivem ao fim destes anos todos, estando provavelmente em estado de continuar a circular por muitos e longos anos.

22 de agosto de 2013

13, 14, 15, 15A, 15A e 15B: Os eléctricos de Belém, Algés, Dafundo, Cruz Quebrada e Estádio (II)

O “problema dos eléctricos”, como era conhecido por todos, ocupou grande parte da vida política da cidade de Lisboa durante os anos quarenta e cinquenta. Na génese do problema parecia estar um facto nunca desmentido: a rede de eléctricos, depois da tal “reorganização dos serviços” efectuada em 1922, pouco mudou – na essência nada, mesmo, poder-se-ia argumentar. Os grandes acontecimentos foram a inauguração de três novas linhas – a da Ajuda, em 1927, que levou à divisão do 18 em duas carreiras (e respectivos desdobramentos); a de Carnide, em 1929, que criou um segundo 13 e eliminou a memória do primeiro; e a linha Campolide/Almirante Reis, em 1936, que criou um segundo 14 que foi por sua vez incorporado no 24 em 1942, transformando-se aquele na circulação de Campolide. Mas a estrutura das carreiras manteve-se, o número de carros em circulação pouco mudou, e os horários (segundo críticas das autoridades responsáveis pela sua aprovação) não foram de todo alterados durante uma vintena de anos.

Como resultado, em 1944 a Direcção-Geral dos Transportes Terrestres, em conjunto com a Câmara Municipal de Lisboa, começaram a pressionar a empresa para restruturar os seus serviços, acabando com o caos que permanentemente se vivia no Rossio e nos Restauradores. Pelos critérios actuais, o dito caos deveria ser muito relativo; mas na altura, a visão de uma ou duas dezenas de eléctricos concentrados na mesma praça, manobrando nas agulhas e dando voltas às raquetes para permitir ultrapassagens, enquanto centenas de passageiros aguardavam em vão transporte para o seu destino constituía um dos principais motivos de insatisfação entre os lisboetas.

Desde 1928 que o terminal da carreira 15 se situava no topo Norte do Rossio, em frente ao Teatro Nacional Dona Maria II e junto a uma das barracas do expedidor. No entretanto, a infra-estrutura da carreira sofrera alguns melhoramentos, com a duplicação da via em vários troços em particular devido ao reforço de serviço para a Exposição do Mundo Português em 1940. Algures no decurso dos anos, o 15 fora semi-oficialmente reforçado com a criação da carreira 15A, que concentrou sob a forma de serviço regular de dias úteis os clássicos extraordinários entre o Rossio e Algés (a propósito do cinquentenário da tracção eléctrica, o Diário Popular refere a introdução de carros atrelados neste percurso a 15 de Julho de 1923, sugerindo que a carreira já funcionaria nesta data, conquanto em regime exclusivamente extraordinário). A 10 de Junho de 1944, com a inauguração do Estádio Nacional, a linha foi prolongada a partir do Dafundo e começaram também a circular eléctricos entre o Rossio e o Jamor, primeiro apenas em serviço extraordinário com autorização dada dia a dia aquando da realização de eventos no novo estádio.

Rapidamente, contudo, se começou a colocar a questão da razoabilidade de manter uma linha entre o Dafundo e o Estádio Nacional, atravessando o extenso aglomerado populacional da Cruz Quebrada, com a finalidade única de fazer por lá circular eléctricos um ou dois dias por mês. Depois de alguma discussão, nomeadamente em relação ao carácter suburbano do serviço, foi autorizado um novo modelo de funcionamento do 15, com nada menos do que quatro carreiras partindo do Rossio.

A carreira principal, detentora do número 15, continuava a circular entre o Rossio e o Dafundo, com quatro carros de manhã, seis de tarde e três a cinco à noite, e frequências de 22 minutos até ao meio-dia, 16 até às nove da noite e 9 a 10 até à uma da madrugada. Alternadamente, partiam carros para a Cruz Quebrada (o 15B) com idênticas frequências entre as sete da manhã e as nove da noite, requerendo cinco carros de manhã e sete da parte da tarde. Aos dias úteis, estas duas carreiras eram complementadas pelo 15A, que tinha nada menos do que oito a onze carros ao seu serviço, e que duplicava a oferta conjunta das outras duas carreiras entre as sete da manhã e as oito da noite. Finalmente, realizava-se um serviço extraordinário para o Estádio Nacional, também formalmente integrado na carreira 15B, sem horário definido.

É interessante constatar que o tempo previsto para os percursos totais do 15 e 15A coincidia, uma vez que o intervalo entre carros era demasiado grande para permitir a ultrapassagem de uma chapa de 15A enquanto o 15 correspondente ia até ao Dafundo. Já a duração das viagens para a Cruz Quebrada – 110 a 112 minutos, num tempo em que o trânsito em Lisboa era quase exclusivamente composto por eléctricos – era bastante superior.

Pouco depois da inauguração do serviço regular até à Cruz Quebrada, contudo, teve início a grande restruturação da Baixa. No caso do 15 e sua família, o processo de restruturação acompanhou as várias fases da restruturação. A 1 de Abril de 1945, quando pela primeira vez em mais de vinte anos algumas carreiras deixaram o Rossio, o 15, 15A e 15B passaram a terminar no lado oriental da Praça do Comércio, assegurando a ligação às carreiras do eixo do Rossio nas paragens colocadas próximo do cruzamento da Rua Augusta. Nesta fase, o 15 e 15B mantiveram o terminal no Rossio a partir das 21h, quando a frequência mais baixa da generalidade das carreiras permitia uma circulação fluída nas Ruas do Ouro e Augusta.

Contudo, se o trânsito nas ruas da Baixa parece ter melhorado um pouco nesta fase, já a Praça do Comércio ficou bastante mais complicada, em particular devido ao cruzamento das linhas de Algés e do Poço do Bispo, que terminavam nas duas raquetes aí existentes. A 13 de Outubro de 1946, a Carris optou por trocar estes terminais – até porque, especialmente no caso das carreiras de Algés, o benefício decorrente da possibilidade de transbordo na zona da Praça do Comércio não era assim tão significativo – e o 15, 15A e 15B transferiram-se para o que seria o seu terminal nos quarenta e cinco anos seguintes: a raquete do lado ocidental da Praça do Comércio. A 1 de Julho de 1947 este passou a ser o terminal oficial das carreiras também no período nocturno; e o 15, 15A e 15B estabilizaram definitivamente com zonas no Terreiro do Paço, Santos, Santo Amaro, Belém, Algés, Dafundo e Cruz Quebrada (ou Estádio).

Se o encurtamento ao Terreiro do Paço motivou bastantes críticas devido à necessidade de transbordo – com penalização tarifária – nas viagens de e para a Baixa, bem como na correspondência com carreiras dos eixos Sul/Norte, que foram simultaneamente encurtadas aos Restauradores ou Martim Moniz, a poupança que com isso se conseguiu no tempo de viagem conduziu a um aumento significativo na frequência da carreira. Este aumento foi também conseguido graças ao processo de aumento da frota de eléctricos que a empresa conseguiu recomeçar a partir do final da guerra. Ainda assim, a 8 de Janeiro de 1948 um levantamento feito pela Direcção-Geral dos Transportes Terrestres dava conta dos mesmos seis carros ordinários em circulação no 15, sete no 15B, e apenas nove (contra os antigos onze) no 15A, a que se juntavam seis carros extraordinários para serviço nas duas carreiras da Praça do Comércio – a do Dafundo e a do Poço do Bispo. No final de 1950, a oferta no 15 e 15B tinha ainda assim aumentado bastante, sendo a frequência de treze a quinze minutos até às 21h, em ambas as carreiras, e reduzida para 27 minutos (mantendo-se a do 15 nos treze minutos) até à uma da manhã. Já o 15A continuava a circular apenas aos dias úteis com intervalos entre os doze e os treze minutos, sugerindo que deixara de haver a perfeita alternância entre os destinos que caracterizava as antigas partidas do Rossio.

É também importante observar que o encurtamento à Praça do Comércio trouxe outro problema prático para a família do 15, que foi a impossibilidade de continuar a utilizar carros atrelados. Se o 15 propriamente dito já não os usava nunca, uma vez que a inversão no Dafundo era realizada com recurso a agulhas, tirando partido dos carros bidireccionais, em Algés havia uma raquete que possibilitava o emprego de atrelados no 15A. Não é porém garantido que estes ainda fossem usados nesta fase: os dados disponíveis sugerem que os carros desta linha eram já todos os chamados “carros grandes abertos”, os maiores de que a empresa dispunha, e que a prática nos anos seguintes continuou a ser a de usar os maiores veículos bidireccionais existentes para estas carreiras. É porém possível que, nomeadamente em dias de eventos em Monsanto ou no Estádio Nacional, os carros extraordinários com início no Cais do Sodré ou em Santos recorressem a atrelados – há inclusivamente fotografias, já dos anos oitenta, que mostram eléctricos atrelados a realizar o percurso entre o Cais do Sodré e o Estádio Nacional.

No final dos anos cinquenta, quando o resto da rede se estava a preparar para a chegada do metropolitano, os eléctricos de Algés receberam duas novas alterações no seu percurso. A primeira deu-se a 21 de Janeiro de 1958: a entrada em vigor de um novo esquema de circulação na zona do Cais do Sodré ditou um novo percurso não apenas para o 15, 15A e 15B, mas também para o 18, que passaram a circular pela Rua Bernardino Costa e Praça Duque da Terceira em ambos os sentidos, quando antigamente efectuavam o desvio pelo Cais do Sodré para aceder à faixa reservada da Avenida 24 de Julho. No ano seguinte, foram manchete as obras do desvio da linha de Algés: com a demolição da antiga praça de touros e construção da actual Praça Dom Manuel I (a rotunda que serve de terminal aos vários operadores rodoviários da zona), a antiga linha quase rectilínea dos eléctricos foi desviada para o percurso actual, pela Rua Damião de Góis, entre o Largo da Estação e a Rua de Pedrouços. As obras, que se iniciaram em Maio, incluíram a colocação de 1480 metros de linha dupla e o levantamento de 1260m de linha (também dupla) na entretanto quase desaparecida Rua Major Afonso Pala. Posteriormente, foi alterado o traçado da linha já em Algés, na Alameda Marechal Carmona (actual Alameda Hermano Patrone). Dos mapas da época há um aspecto que não é contudo claro: a localização do terminal dos carros de Algés, que provavelmente se situava originalmente numa agulha próxima da estação de comboios (onde seria também a mudança de zona) e que em princípio terá sido nesta fase transferida para a raquete existente no jardim de Algés. Em contrapartida, há referências à existência duma raquete em Algés desde finais de 1912, pelo que é uma questão que terá de ser esclarecida mais tarde.

Mas os anos cinquenta não foram um mar de rosas. Apesar do encurtamento à Praça do Comércio ter resolvido muitos dos problemas de circulação dos carros de Algés; apesar da linha dedicada na 24 de Julho – afastada das zonas residenciais do eixo ribeirinho e permitindo um serviço mais rápido nomeadamente entre o Cais do Sodré e Santos, onde além dos 15s só circulavam alguns carros da família da Ajuda –; apesar do regime de carros directos até Belém, tentando privilegiar o transporte para aqueles passageiros para os quais não havia alternativas aos eléctricos de Algés, Dafundo e Cruz Quebrada, o serviço, em especial às horas de ponta, deixava muitas vezes bastante a desejar. Há queixas de períodos de meia hora sem eléctricos em condições normais de exploração; e a quantidade de carreiras de autocarros para Algés inauguradas neste período – o 23, logo em 1949, o 12, em 1952, e o 29, em 1954, para além do serviço extraordinário de autocarros para o Estádio Nacional, com percurso paralelo ao do eléctrico, em circulação desde 1944 – para além das propostas e nunca aprovadas (como o prolongamento 27) ilustra bem o sentimento por parte da própria empresa de que o serviço à ponta ocidental da cidade era tudo menos perfeito. Por outro lado, o anúncio do reforço do serviço durante toda a espécie de provas em Monsanto nos verões dos anos cinquenta demonstra a afluência de passageiros à ligação mais popular do centro da cidade àquele quase-subúrbio.

Os anos sessenta vieram complicar as coisas, com o declínio da rede de eléctricos a partir de 1962. Se a restruturação da rede em 1960 por uma vez não afectou directamente o 15, já o aumento de tarifas a 1 de Julho de 1962 foi transversal e teve um impacto imediato no número de passageiros transportados. Ao longo dos anos sessenta, toda a rede de eléctricos se ressentiu; e se o 15 foi continuando a circular sem alterações perceptíveis – descontando as reduções de horário – já a qualidade do seu serviço foi decaindo, fruto da redução da oferta quer no 15, 15A e 15B, quer nas carreiras paralelas que complementavam o seu serviço.

A 1 de Janeiro de 1962 o 15A e 15B começaram a desaparecer enquanto números de carreiras indicados nas bandeiras de destino. Por forma a evitar equívocos, a Carris optou por um novo sistema de numeração, renumerando as carreiras alfanuméricas que não eram simplesmente subcarreiras de outras (como o 1A e o 17A) e passando a identificar as restantes como “cortados” das carreiras principais. De facto, para um passageiro no Cais do Sodré era completamente irrelevante se o carro que aí vinha para Algés era um carro do 15A em horário, um carro de chapa do 15 atrasado e encurtado, ou um extraordinário ao serviço de alguma daquelas duas carreiras. Assim, os 15As passaram a circular como cortados do 15 (distinguindo-se apenas pela chapa); mistério completo é o que é que passou a ser indicado no 15B. Provavelmente, todos os carros para Dafundo, Cruz Quebrada e Estádio andavam com bandeiras de 15, enquanto os de Algés (e outros encurtamentos) circulavam como cortados.

Contudo, a presença do 15A e 15B continuou a ser registada em guias, plantas, chapas de carreira e placas de paragem. A situação alterou-se no início dos anos setenta: uma listagem de carreiras disponibilizada pela própria Carris por volta de 1972 apresenta 15 e 15B (mas não o 15A), enquanto um mapa interno da empresa, consultável no arquivo da Câmara Municipal de Lisboa e datado de 2 de Janeiro de 1973 já apresenta apenas o 15 como circulando entre a Praça do Comércio e a Cruz Quebrada. Contudo, o guia de Outubro desse ano – cuja listagem de carreiras de eléctricos foi actualizada entre duas tiragens, sendo retiradas as carreiras das linhas de Benfica, Lumiar e Carnide – mantém a indicação de 15, 15A e 15B. Só em Maio de 1974 é que a listagem das carreiras de eléctricos passou a incluir apenas o 15, fundido todos os serviços do eixo de Algés.

Mas a história não é tão simples assim. Até ao abandono definitivo da raquete da Praça do Comércio, a placa lá existente indicava explicitamente tratar-se de uma zona das carreiras 15, 15A e 15B (para Algés, Dafundo e Cruz Quebrada). Refiro-me, entenda-se, à placa de paragem, e não ao anúncio gigante que também se encontrava no mesmo terminal e que repetia a indicação, embora sem números de carreiras. Para além das várias fotos da mesma disponíveis na internet, vários lisboetas se recordarão ainda da placa, que só foi retirada em finais de 1993. Em contrapartida, do outro lado da mesma praça a raquete do 18 indicava também os destinos de Boa-Hora, Calçada da Ajuda e Ajuda, mas apenas o número 18.

As fotografias de eléctricos tiradas por turistas durante este período também são intrigantes: numa delas, datada de Setembro de 1978, vê-se claramente um eléctrico de salão com destino ao Dafundo e chapa de 15A; noutra, de Abril de 1977, surge outro carro com destino à Praça do Comércio e idêntica chapa. Ambas as fotos datam duma altura em que a carreira supostamente já estava mais que suspensa. Em contrapartida, há outras fotografias datadas de 1972 mostrando eléctricos com destino à Cruz Quebrada e ao Estádio Nacional e com chapas de 15, numa altura em que este serviço ainda deveria ser assegurado pelo 15B.

A questão principal é que toda esta discussão relativa aos números das carreiras era completamente irrelevante para os seus utilizadores. Desde sempre que os carros eram identificados pela bandeira de destino – muito antes de terem número, já os 15s eram identificados como “a carreira do Dafundo” ou de Algés. (Incidentalmente, isto não permitia distingui-los do 13 e do 14; além de Santos, tal distinção não era relevante; antes, a diferença era assinalada por uma placa colocada no exterior do carro indicando a circulação pelo Cais do Sodré ou pelo Conde Barão.) A indicação do número da carreira, iniciada nos anos trinta por forma a simplificar a vida à grande proporção de passageiros analfabetos, foi encarada por muitos como inútil – há uma espantosa reclamação dos anos sessenta em que um senhor critica a Carris porque passou a haver duas circulações da Estrela que são impossíveis de distinguir, e que não é por uns carros dizerem 25 e outros dizerem 29 que ele vai saber quais são quais...

Mas antes da fusão dos três 15s numa única carreira, toda a família esteve em risco de desaparecer. É bem conhecido o projecto de eliminação da rede de eléctricos a implementar entre 1971 e 1977, que – como vários outros – nunca passou do papel. (A supressão dos ramais de Benfica, Carnide e Lumiar foi acidental, fruto das circunstâncias e não de um projecto estruturado.) Já não será tão conhecido o facto de, a 26 de Março de 1969, a Carris ter dado entrada nas autoridades competentes de um projecto de transformar a carreira extraordinária do Estádio Nacional (na altura, salvo erro, ainda com o número 64) num serviço regular. O projecto era bastante completo: a carreira circularia entre a Praça do Comércio e o Estádio pela Avenida da Índia e Avenida Marginal até ao Estádio Nacional, retornando pelo percurso do eléctrico até Algés. Na proposta, elaborada a pedido do próprio Estádio Nacional, o período de funcionamento estava reduzido às horas de ponta e de almoço, com intervalos de meia hora; mas é previsível que, se tivesse sido autorizada, a carreira rapidamente adquirisse o percurso do eléctrico entre Belém e o Estádio Nacional, substituindo-se ao 15 e encurtando a linha ocidental de eléctricos ao Mosteiro dos Jerónimos. Feliz ou infelizmente, a Direcção-Geral dos Transportes Terrestres não autorizou a carreira recorrendo-se do mesmo argumento utilizado ao longo dos anos sessenta para recusar as propostas de transporte para a Damaia, Buraca, Algés de Cima, Prior Velho ou Odivelas: a Carris não tinha competência para explorar percursos suburbanos com carácter regular. Claro que o percurso em questão era explorado por eléctricos em serviço regular e por uma carreira extraordinária, mas cuja exploração não requeria mais autorizações.

Claro que, com o 25 de Abril, a situação se alterou radicalmente. Com a imigração súbita que se verificou a seguir à revolução, a periferia da cidade encheu-se subitamente de gente e o 15 ganhou nova vida. Em 1976, a frequência do 15 era de quatro minutos em hora de ponta (e cinco aos sábados); no primeiro horário publicado, no ano seguinte, e já após o reforço do serviço com o prolongamento do 16 a Algés, a carreira tinha frequências de cinco minutos em hora de ponta, sete no corpo do dia, seis a oito aos sábados, onze aos domingos e feriados e dezasseis no período nocturno.

O período revolucionário ficou contudo marcado por uma tragédia no 15. No dia 11 de Junho de 1976, o guarda-freio e o cobrador dum veículo ao serviço da carreira foram assassinados no Estádio Nacional, presumivelmente num assalto. No dia seguinte, toda a frota da Carris parou durante cinco horas em protesto; os responsáveis nunca foram capturados.

O crime trouxe a público os problemas da circulação de transportes, que tornam risíveis os existentes actualmente. Em diversos pontos da rede, os terminais eram completamente isolados e situavam-se em zonas de populações carenciadas onde os assaltos e ameaças eram uma constante. Se o terminal do Estádio Nacional se tornou emblemático desta situação, havia outros mais discretos espalhados por toda a cidade e arredores, sendo notória a falta de serviço nocturno nalgumas carreiras (como o 34) que certamente teriam procura. No caso do 15, a própria raquete da Cruz Quebrada situava-se no meio dum acampamento de ciganos, um aspecto que é apresentado como algo de completamente inconcebível nos comentários aos registos fotográficos de estrangeiros em Lisboa no final dos anos setenta.

Contudo, e ao contrário do que está afirmado num livro de Marina Tavares Dias, o serviço ao Estádio Nacional foi retomado de imediato nos mesmos moldes que antigamente – sensivelmente um carro a cada meia hora, entre as sete da manhã e as nove da noite. De facto, poucos meses depois surgem críticas de passageiros ao serviço do 15 que confirmam a continuação do serviço. (As queixas referem que o serviço ficara substancialmente pior desde o fim dos carros para o Dafundo – algo que hoje seria impensável, uma vez que a manobra de inversão era feita em agulha.)

Mais do que ao percurso ou ao horário, as grandes alterações no 15 durante este período dizem respeito às suas paragens e tarifas. A grande restruturação pós-revolucionária, para além das alterações mais óbvias de encurtamentos, prolongamentos e novas carreiras, teve um impacto enorme a nível das paragens e distribuição das zonas. É curioso constatar que as alterações brutais realizadas entre o final dos anos quarenta e meados dos anos cinquenta quase nada afectaram as zonas servidas pela carreira 15 de eléctricos: com excepção da Baixa, a carreira já tinha um serviço quase expresso entre o Cais do Sodré e Alcântara, onde a circulação pela faixa reservada da Avenida 24 de Julho não justificava a densidade de paragens habitual no resto da rede, enquanto o percurso além daquela zona não sofria, na época, dos congestionamentos crónicos que levaram à redefinição completa dos locais de paragem no centro da cidade. Na segunda metade dos anos setenta a situação alterou-se radicalmente, e no Verão de 1978 assistiu-se a uma nova reorganização do mapa de paragens da cidade, que afectou o 15 em particular (novamente) na zona da Baixa e ainda em Alcântara.

Em paralelo a estas alterações, a introdução do passe social a 1 de Janeiro de 1976 veio acelerar o processo de convergência tarifária entre autocarros e eléctricos. Desde o início da década que a distinção se tinha começado a esbater, dada a substituição de várias carreiras de eléctricos por autocarros com idêntico tarifário nas linhas do Areeiro, Lumiar, Benfica e Carnide. Em simultâneo, as tarifas de uma zona passaram a ter preços idênticos, valendo a tarifa mais baixa para uma zona de autocarros e uma ou duas de eléctricos, e sendo as viagens mais longas em eléctricos tarifadas como duas zonas de autocarros. Em 1976 a convergência tarifária deu um novo passo, com as viagens de duas zonas de eléctricos a subirem para o preço das viagens de duas a quatro zonas de autocarro. A distinção entre os dois tarifários passou a sentir-se apenas em viagens de maior comprimento – e poucas carreiras de eléctricos atingiam a quinta zona tarifária –, sendo porém reforçada pela manutenção de zonas mais extensas para os carros eléctricos. O caso do 15 era paradigmático: as zonas realizavam-se no Terreiro do Paço, Santos, Santo Amaro, Belém e Algés, enquanto os autocarros que circulavam no mesmo percurso faziam zona no Terreiro do Paço, Santos, Alcântara-Mar ou Calvário, Cordoaria, Belém, Largo da Princesa e Algés. Mas a transferência súbita de 90% dos passageiros para o regime de passe social e a eliminação progressiva dos cobradores tornavam estas diferenças cada vez menos relevantes, e em 1978 o 15 perdeu uma zona (a do Dafundo), reduzindo as tarifas no percurso suburbano; a 1 de Fevereiro de 1981, a conclusão da restruturação de zonas alterou as zonas da carreira por completo, com o desdobramento da zona de Santo Amaro em Calvário e Cordoaria e da zona de Belém (nos Jerónimos) por Belém (na Junqueira) e Largo da Princesa.

O ano seguinte trouxe a última alteração do clássico 15, com o encurtamento provisório ao Dafundo e subsequente restabelecimento de percurso apenas até à Cruz Quebrada, sendo abandonado o ramal até ao Estádio Nacional. Penso que se tratará de um encurtamento distinto do que vigorou a partir de Fevereiro de 1979, embora o motivo tenha sido sempre o mesmo: riscos de derrocada de um muro no Dafundo (o motivo que levaria finalmente à supressão dos eléctricos a partir de Algés em 1996). O encurtamento de 1982 foi suficientemente prolongado para justificar a elaboração e publicação de novos horários; mas, contrariamente ao que é apontado por Marina Tavares Dias, não parece estar relacionado com qualquer assassinato no Estádio Nacional: parece bastante improvável que tal situação se tenha repetido duas vezes, e não encontrei qualquer referência a esse facto nos jornais de 1982 que consultei.

Em meados dos anos oitenta começaram a surgir os projectos de modernização do 15, e a carreira iniciou um processo de modernização que a tornou, novamente, pioneira entre as carreiras da rede.

13 de agosto de 2013

13, 14, 15, 15A, 15A e 15B: Os eléctricos de Belém, Algés, Dafundo, Cruz Quebrada e Estádio (I)

Este é o último texto deste blog. Sendo dedicado à mais antiga carreira de eléctricos em circulação – o 15 –, é também um texto sobre a própria rede de eléctricos, que com ela foi inaugurada e cujas principais restruturações também a afectaram. Pela sua dimensão, este texto vai ser publicado em várias partes, terminando na data em que a rede de eléctricos comemora o seu 112º aniversário.


Uma data desconhecida da maioria dos lisboetas, o dia 31 de Agosto de 1901 foi um dos mais importantes na história da cidade de Lisboa. A inauguração do serviço de carros eléctricos iniciou um rápido processo de mudança que redefiniu a forma de viver na cidade, encurtando as distâncias e reduzindo (muito) o custo das deslocações.

Oficialmente, o serviço de carros eléctricos foi inaugurado entre o Cais do Sodré e Algés, numa carreira correspondente à antiga linha A de americanos e que viria mais tarde a ter o número 15. O acontecimento foi notícia em todos os jornais, estando aliás amplamente descrito em vários livros; mas nenhum dos que encontrei refere um pormenor interessante (talvez por estar ausente da reportagem do Diário de Notícias) que é citado quer no Jornal do Comércio, quer na brochura comemorativa que a Carris editou no cinquentenário desta inauguração: é que, na realidade, os primeiros carros que saíram de Santo Amaro naquela madrugada destinavam-se ao Terreiro do Paço.

Sim, caro leitor. A primeira linha de carros eléctricos era entre o Terreiro do Paço e Algés; e até às seis da manhã era esse o percurso que os carros faziam, uma vez que o serviço com tracção animal só se iniciava a essa hora. A partir das seis, os eléctricos eram encurtados ao Cais do Sodré para evitar a sobreposição de meios de transporte na Rua do Arsenal.

E assim, tal como a rede de autocarros, também a história oficial da inauguração da rede de eléctricos começa com um erro.

Perante o sucesso da inauguração, o processo de electrificação começou rapidamente a avançar em direcção ao resto da cidade e a primeira carreira de eléctricos começou desde logo a crescer. O prolongamento mais misterioso é o logo o primeiro, ocorrido apenas uma semana depois: a 8 de Setembro (um domingo – embora o serviço de eléctricos tenha começado num sábado, praticamente todas as extensões seguintes da rede ocorreram em domingos) a carreira de Algés foi prolongada ao Dafundo, saindo dos limites da cidade, estendendo o antigo serviço de carros americanos (que tanto quanto consta nunca foram ao Dafundo) e criando desde logo uma anomalia na rede, com um estranho prolongamento suburbano que seria único durante mais de setenta anos.

Uma semana mais tarde, foi inaugurada a linha através da Baixa, e a carreira do Dafundo – que entretanto já não era a única – foi prolongada à Avenida, pelo Rossio. O terminal original situava-se numa raquete na Rua Alexandre Herculano (do lado de Santa Marta); a 29 de Novembro foi autorizada a linha contornando o Marquês de Pombal, e no ano seguinte a carreira é referida oficialmente (curiosamente, com o número 1) como circulando entre a Rotunda e o Dafundo. Pouco após a inauguração da linha de Benfica, a carreira do Dafundo foi encurtada e passou a terminar na Rua das Pretas, motivando uma reclamação por parte da Câmara Municipal em Outubro de 1902 por o terminal na Rotunda se manter apenas aos domingos à tarde. As variações de terminal parecem ter sido relativamente frequentes, à medida que a rede se desenvolvia e era necessário gerir as agulhas, raquetes e desvios, mas a futura carreira 15 parece ter estabilizado nesta versão e não com terminal no Rossio, como está erradamente referido nalgumas fontes – até porque a zona para as restantes carreiras era na Rua das Pretas.

O carácter experimental e fluido da rede de eléctricos do tempo da monarquia é ilustrado pela rapidez com que carreiras, horários e tarifas eram alterados. Provavelmente nunca vamos conseguir descobrir tudo o que aconteceu nesse período – a menos que um dia alguém competente seja autorizado a consultar os arquivos da Carris –, mas as fontes que consultei referem algumas carreiras curiosas que ao longo dos anos complementaram o serviço do eléctrico do Dafundo. A primeira é referia pelo Diário de Notícias e iniciou-se a 20 de Novembro de 1901: uma pequena “circulação” [sic], inaugurada nessa mesma quarta-feira, partindo da raquete da Alexandre Herculano e descendo a Avenida, Rossio e Rua Augusta até ao Terreiro do Paço, subindo depois pela Rua do Ouro, Rossio e Avenida até à Alexandre Herculano; posteriormente, com a inauguração da linha da Rotunda, os carros passaram contorná-la em vez de cruzar a Avenida para aceder à raquete. Ao que tudo indica, a carreira desapareceu em menos de um ano.

Já no que toca a tarifas as primeiras reduções parecem ter entrado em vigor a 2 de Agosto de 1902, menos de um ano depois da inauguração da carreira. Nessa altura, a diminuição de custos já era tão flagrante que a empresa começou uma campanha de diminuição de tarifas que mudou definitivamente a vida da cidade. Assim, as viagens entre o Cais do Sodré e Algés baixaram de 80 para 60 réis; entre o Cais do Sodré e o Dafundo passaram de 90 para 80 réis; entre Santos e Belém ou Algés passaram para 50 réis; e entre Santos e o Dafundo para os 60 réis. Em todos os casos, o preço das viagens desceu entre 10% e 25%, tornando o transporte muito mais acessível à população em geral.

Em Maio de 1902, poucos dias antes da inauguração da linha de Benfica, a carreira do Dafundo era servida por seis carros eléctricos, assegurando uma frequência de vinte minutos entre as seis da manhã e a meia-noite para um percurso total com duração de uma hora em cada sentido. Um ano mais tarde, já com o terminal na Rua das Pretas, a situação era semelhante, realizando-se a primeira partida do Dafundo às 7h02 e a última às 23h42. Claro está que a carreira era reforçada por várias outras ao longo de diferentes troços do seu percurso.

No final de 1905, o início das obras de construção da linha do Bairro Camões (a carreira da Gomes Freire) levou a que a raquete da Rua das Pretas tivesse de ser levantada, implicando a deslocação do terminal da carreira do Dafundo para o Rossio ou o Marquês. Não é claro qual das opções foi tomada – há referências contraditórias –; mas a 20 de Novembro do ano seguinte, a propósito da discussão sobre que carreira prolongar ao Campo Pequeno, a Carris refere as carreiras com terminal na Rotunda. Àquela data, nenhuma das minhas fontes refere carreiras com terminal na Rotunda...

Sendo uma carreira de longo curso, o 15 não teve direito a Carros do Povo quando estes iniciaram o seu serviço em 1902. Contudo, até 1916 a carreira do Dafundo tinha um serviço especial: o serviço de banhos, durante os meses de Verão, permitindo adquirir bilhetes de ida-e-volta de Lisboa para Algés em determinadas condições. Infelizmente, mais uma vez, as escassas fontes que referem o tema não o desenvolvem.

O período mais animado na história da carreira do Dafundo é também, infelizmente, o período sobre o qual menos informação há. Entre 1906 e 1920 a carreira conheceu um crescimento brutal, devido a uma súbita migração da população para o eixo de Belém-Algés-Dafundo (possibilitado pelos novos preços dos transportes), e desdobrou-se em três. À data em que a numeração das carreiras foi fixada, passando a existir um número interno para efeitos de gestão pela Carris, as carreiras do Dafundo receberam os números 13, 14 e 15.

De todo este período, há uma fotografia da rede no início de 1914: um estudo realizado pela Câmara Municipal de Lisboa propondo uma reorganização das tarifas, baixando (ainda mais) os preços – que ainda eram os mesmos de 1902. A carreira 15 é a primeira da listagem (ainda reflectindo a sua identificação como a carreira A de americanos), circulando agora inequivocamente entre o Marquês de Pombal e o Dafundo com zonas na Rua das Pretas, Terreiro do Paço, Santos, Santo Amaro e Jerónimos; mas seguem-se duas outras carreiras com terminal no Dafundo, circulando em direcção ao Intendente e aos Caminhos de Ferro.

A lógica utilizada para as carreiras de Belém – em que a carreira dos Caminhos de Ferro era o 16, a do Intendente era o 17, e a do Rossio era o 18 – sugere que as carreiras do Dafundo tenham sido numeradas pela mesma ordem, resultando no número 13 para a dos Caminhos de Ferro, 14 para a do Intendente e 15 para a do Rossio e Marquês. Nesta listagem, o hipotético 14 surge em segundo lugar, distinguindo-se do 15 por circular pelo Conde Barão e não pelo Cais do Sodré; e o presumível 13 é a terceira carreira, circulando também pelo Conde Barão. Ambas estas carreiras têm uma zona a menos do que o 15, já que a zona seguinte ao Terreiro do Paço era, consoante os eixos, o Rossio, o Intendente ou os Caminhos de Ferro.

A restruturação da rede teve lugar entre o final da I Guerra Mundial e 1922. Esses foram anos política e socialmente conturbados em Portugal, marcados por repetidas greves dos guarda-freios da Carris. Para minimizar os efeitos da greve, o Governo mandou a Guarda Nacional Republicana conduzir eléctricos pelas ruas da capital; e os piquetes de greve retorquiram sabotando os carros, por forma a que se incendiassem quando começavam a trabalhar. Como resultado, a frota da empresa ficou fortemente condicionada, com – segundo os relatos dos jornais da época – cerca de cinquenta a sessenta carros eléctricos ardidos.

Como resultado, cada normalização da circulação acarretou reduções na oferta por necessidades de serviço; e, como é hábito, muitas dessas reduções acabaram por se tornar definitivas. Infelizmente, não disponho de dados concretos: o facto de os números das carreiras não serem usados torna todas as notícias muito mais complicadas de ler, e a enumeração das carreiras em circulação a cada dia não era propriamente a prioridade dos repórteres de então.

A título de exemplo, cito o Diário de Lisboa, cuja edição infelizmente se iniciou apenas em 1921 (em particular, depois das obras de reconstrução do Rossio que também tiveram impacto na concepção da rede de eléctricos). A 3 de Junho de 1921, teve início (mais) uma greve de eléctricos, que perdurou até ao dia 2 do mês seguinte; aparentemente, o restabelecimento da circulação foi pacato e sem incidentes. Mas a 21 de Janeiro do ano seguinte iniciou-se uma nova greve; e apesar de só ter durado dois dias, o restabelecimento fez-se com apenas oitenta carros – os restantes só voltaram a circular à medida que iam sendo reparados. A 16 de Fevereiro os eléctricos pararam outra vez, e o restabelecimento – a partir do dia seguinte, com eléctricos conduzidos pela Guarda Nacional Republicana sob escolta depois de as instalações da empresa terem sido postas sob guarda para evitar mais sabotagens – previa-se “lento” – à medida que os electricistas da GNR conseguissem reparar satisfatoriamente os carros. (Ainda assim, houve alguns incidentes: um dos primeiros carros que saiu de Santo Amaro incendiou-se antes de chegar ao Calvário.)

E de imediato o jornal noticia que a primeira carreira a ser restabelecida será a carreira do Dafundo ao Lumiar [sic]. Não é claro se se tratava do percurso do eléctrico 15 de então – tudo é possível – ou de uma fusão temporária do 15 com o 2 para minorar os transtornos dos lisboetas. É que quatro dias mais tarde ainda havia apenas vinte carros em circulação, nas carreiras de Algés e Campo Grande (agora já indicadas como duas). Seguiram-se as carreiras do Arco do Cego, Almirante Reis e Santo Amaro (a 22 de Fevereiro), Benfica e Caminhos de Ferro (a 23) e as carreiras do Rossio (!) e da Rio de Janeiro (a 24). E no dia 25 surge a notícia bombástica: “Consta que a CCFL está reorganizando os seus serviços de forma a dispensar a quasi totalidade do seu pessoal em greve.” De que forma, nunca foi divulgado explicitamente.

A eliminação do 13 e do 14, provavelmente compensada com o reforço não apenas do 15, mas também do 16 e do 18, data provavelmente de mais atrás: há listagens de carreiras do início de 1922 que já não têm estas carreiras, embora ainda incluam outras igualmente arcaicas como o 4 ou o 27. Em contrapartida, esta é a altura em que o 15 surge com o seu percurso oficial confirmado mais extenso: do Dafundo ao Campo Pequeno, consoante descrito em duas fontes distintas de 1924, com uma extensão total de 13.852 metros e nada menos do que nove zonas tarifárias: Dafundo, Algés, Belém, Santo Amaro, Santos, Rossio, Alexandre Herculano, Saldanha e Campo Pequeno – permitindo percursos urbanos com tarifação da sétima zona, algo que em 1957 era considerado “impossível” e motivou meses de atraso na inauguração da linha da Avenida Afonso III.

Em contrapartida, não é claro como é que a carreira funcionava – em particular, não é claro que fossem vendidos bilhetes de Algés para o Campo Pequeno (a zona extra até ao Dafundo era sempre tarifada em separado, por se tratar dum percurso suburbano). A questão é que os carros partiam do Dafundo com destino ao Rossio, mudando a bandeira para Campo Pequeno ao chegar àquela praça. Todas as dúvidas terminam, no entanto, no dia 1 de Junho de 1928: na data em que em Portugal o trânsito começou a circular pela direita (às cinco da manhã na capital e à meia-noite no resto do país), a carreira do Dafundo passou a terminar definitivamente no Rossio e a funcionar como carreira directa, não sendo vendidos bilhetes a partir daquela praça para pontos do percurso anteriores a Belém. Ao fim de menos de trinta anos de existência, o 15 já era a carreira principal do eixo ribeirinho ocidental e uma das maiores movimentadoras de passageiros da cidade.

2 de agosto de 2013

18 e 18A: O grande eléctrico da Ajuda

Se o 24 é o eléctrico sobre o qual se repetem mais factos errados, o eléctrico da Ajuda é o honroso detentor do segundo lugar no pódio. Desde há treze anos a carreira mais controversa da rede, os seus defensores pecam em primeiro lugar por repetirem cegamente todos os mitos que têm sido incorrectamente impressos inclusivamente em livros sobre o assunto.

As origens do 18 são um mistério completo, sendo provavelmente a carreira cujo estabelecimento é mais incerto. Há duas referências objectivas que permitem circunscrever o período da sua inauguração aos anos entre 1914 e 1924: um estudo da Câmara Municipal de Lisboa datado de 1914, já aqui várias vezes referido, e um mapa das carreiras de eléctricos de 1924, também já mencionado noutros textos. O segundo indica os números das carreiras, e o 18 lá está – mas não o 18 como o conhecemos, e sim a sua versão pré-linha da Ajuda que nunca ninguém se deu ao trabalho de estudar; o primeiro lista exaustivamente todas as carreiras de eléctricos em circulação – e o 18 é conspícuo pela sua ausência.

Em 1924, a carreira 18 de eléctricos era um desdobramento da carreira 17 que servia a Pampulha e a prolongava ao Alto de São João. Partindo de Santo Amaro, a carreira seguia pela Rua de Alcântara e linha das Janelas Verdes, juntando-se ao 17 em Santos e continuando com ele até à Almirante Reis; mas daqui o 18 seguia, subindo a Morais Soares, e terminando em frente ao Cemitério do Alto de São João. Há sugestões de que a carreira terá tido originalmente terminal em Belém, e muito provavelmente em 1924 mantinha-o ainda aos domingos e feriados; nesse mesmo ano, o 18 foi encurtado a Alcântara-Terra, conforme descrito em duas fontes independentes, provavelmente em preparação da evolução seguinte.

Juntando um terceiro elemento a estes dados, é possível desenvolver uma teoria verosímil sobre a origem da carreira, embora até à data não confirmada. A 20 de Junho de 1921, o Diário de Lisboa publicou uma longa entrevista com Eduardo Jorge, um dos grandes empresários dos transportes públicos do início do século, que refere a linha do Alto do Pina como um exemplo do “mau serviço” prestado pela Carris aos lisboetas. O bairro pedia o prolongamento dos carros eléctricos ao Alto de São João, mas a Carris considerava o serviço financeiramente desinteressante e ignorava os pedidos; pelo que a empresa Eduardo Jorge resolveu começar a explorá-lo. Ao fim de três anos, quando o investimento ficou amortizado e a linha começou a dar lucro, a Carris reagiu e estabeleceu uma carreira de eléctricos concorrente; como resultado, os carros do Chora deixaram de ter clientes e foram suspensos em 1917.

Parece assim que a carreira 18 de eléctricos iniciou o seu serviço por volta de 1916 ou 1917, desdobrando o 17, reforçando o serviço do 19 na Pampulha e assegurando a ligação ao Alto de São João. Mas o verdadeiro carácter da carreira só se começou a definir em 1927, quando foi inaugurada a linha da Ajuda.

Os carros eléctricos para a Calçada da Ajuda estavam previstos desde os primórdios da rede de eléctricos, com um ramal da linha de Belém funcionando em circulação pela Calçada da Ajuda e pela Calçada da Tapada. As sucessivas crises e, aparentemente, os atrasos na urbanização da zona da Ajuda foram contudo adiando estes projectos por tempo indefinido. Com o início do Estado Novo, a linha foi finalmente construída e inaugurada a 2 de Agosto de 1927.

É perturbador constatar que nenhum dos vários autores que se debruçaram sobre o assunto se preocupou em consultar jornais sobre a entrada em serviço desta linha. A notícia publicada no Diário de Notícias não podia ser mais explícita: junto à fotografia do eléctrico da nova carreira, o texto conta como os eléctricos da nova linha partiram do Intendente, do Rossio e do Alto de São João...

Só que o novo 18 já não era de todo um serviço local: a única carreira a servir o longo troço entre o Largo de Alcântara e o Cemitério da Ajuda passou a ter uma afluência tal de passageiros que deixou de ser uma alternativa para os passageiros do eixo da Pampulha. A Carris estabeleceu rapidamente reforços para a Calçada da Ajuda; mas foi necessário restruturar o serviço do 18 e, antes do final da década, a antiga carreira 18 tinha dado origem a quatro carreiras: o 17A, que ficou responsável pelo serviço entre a Praça do Comércio e o Alto de São João; o 18B, mantendo o serviço do 18 entre o Rossio e a Boa-Hora, pelo eixo da Pampulha; e o 18 e 18A, também eles partindo do Rossio (e abandonando assim definitivamente o eixo da Almirante Reis) com terminal, respectivamente, no Cemitério da Ajuda e na Calçada da Ajuda. As fontes não são completamente esclarecedoras neste ponto, mas tudo indica que o 18 e o 18A circulassem já nesta altura pelo eixo ribeirinho exterior entre Santos e o Calvário, tendo ainda trocado a Boavista pelo Cais do Sodré em Dezembro de 1937.

O 18 foi integrado no esquema dos carros operários logo a 1 de Agosto de 1935, tendo-se estes mantido até à sua supressão definitiva a 31 de Dezembro de 1975. Para melhorar o serviço da carreira, em 1939 foi construída uma nova linha de ligação entre a Rua Primeiro de Maio e a Calçada da Tapada, pela Rua Leão de Oliveira, evitando assim que os carros do 18 e 18A tivessem de seguir pela Rua de Alcântara.

A restruturação da Baixa fez o 18 e 18A largarem o Rossio durante os anos quarenta. A 1 de Abril de 1945, os carros extraordinários da carreira deixaram o terminal da família para passarem a terminar no Cais do Sodré, enquanto dois anos mais tarde, a 1 de Julho de 1947, os carros ordinários deixaram de contornar o Rossio, passando a subir a Rua dos Fanqueiros e a efectuar terminal logo no início da Rua da Prata; finalmente, a 30 de Dezembro de 1950, com a inversão de sentidos nas Ruas da Prata e dos Fanqueiros, o 18 passou a terminar na raquete oriental da Praça do Comércio, o seu terminal central mais duradouro, enquanto o 18A passou a funcionar exclusivamente como serviço extraordinário (e portanto com terminal no Cais do Sodré).

Seguiram-se os animados anos cinquenta, em que o 18 viu o seu serviço reforçado. Em 1951, a Carris informava em resposta a uma reclamação que a carreira tinha nada menos do que 23 carros ao seu serviço; contando com 45 minutos para a viagem em cada sentido, isto corresponderia a uma impressionante frequência de quatro minutos – um reforço relativo ao guia editado no ano anterior, a que era preciso juntar ainda as viagens do 18B e todos os carros extraordinários. Mas o funcionamento da carreira parece não ter sido tão idílico como estas referências podem fazer supor: os passageiros queixavam-se dos frequentes encurtamentos que faziam com que, em hora de ponta, a maioria das viagens do 18 não chegassem à Rua das Açucenas, invertendo a marcha na Boa-Hora ou na Calçada da Ajuda como os desdobramentos.

O serviço da carreira durante parte dos anos cinquenta foi ainda perturbado pela reconstrução quase integral das linhas da Calçada da Tapada e da Leão de Oliveira, com o 18 a circular em via única ou por percursos alternativos entre 1954 e 1956. Ao entrar nos anos sessenta, contudo, os problemas da carreira passariam a ser outros: a crise que afectou toda a rede começou também a pôr em causa a capacidade da Carris continuar a assegurar toda a oferta de eléctricos na linha da Ajuda.

A inauguração da Ponte Salazar, a 8 de Agosto de 1966, veio trazer algumas mudanças aos transportes da zona. Com a criação de mais carreiras de autocarros para a Ajuda, onde os autocarros já chegavam desde 1950, e para o Alto de Santo Amaro e Boa-Hora, a carreira 18A deixou de funcionar provavelmente a 24 de Julho desse ano, ficando o 18 finalmente sozinho. É provável que a carreira tenha mantido frequências bastante elevadas – mas a oferta de eléctricos naquele eixo há-de ter diminuído bastante devido à supressão das outras duas carreiras que desde 1928 lhe faziam companhia. Poderá ter sido também nesta altura que o 18 retomou o seu percurso antigo pela Rua da Boavista e Conde Barão até Santos, deixando apenas o mais comprido 15 no eixo do Cais do Sodré. Os anos até ao 25 de Abril foram de declínio, com a oferta a diminuir à medida que o serviço de autocarros para a zona ocidental da cidade crescia.

O primeiro horário do eléctrico 18 disponível data de Outubro de 1977 e revela uma carreira com frequências de sete minutos durante o dia e vinte no período nocturno. Em 1982 a Carris reduziu a oferta na carreira, mas a medida deve ter causado transtornos e o horário original foi reposto poucos anos mais tarde. Com a restruturação de serviço nocturno de 1987 o 18 passou a terminar o seu serviço às 21h30; e em 1989 a sua frequência começou finalmente a diminuir. Por estes tempos o 18 era tristemente conhecido como a carreira dos descarrilamentos, com dois ou três acidentes espalhafatosos nas curvas entre a Calçada da Ajuda e a Boa-Hora durante o ano de 1986, a que se juntou um descarrilamento nas agulhas da Rocha...

Depois de nesse Verão ter retomado o percurso pelo Cais do Sodré na sequência das obras de reconstrução da Avenida 24 de Julho, a 11 de Novembro de 1992, sem qualquer pré-avisto nem razão óbvia, o terminal da Praça do Comércio passou para a Rua da Alfândega, onde a raquete tinha sido transformada durante os meses anteriores para acolher eléctricos vindos da Baixa e não dos Caminhos de Ferro. Em 1994 e 1995 a carreira viu a sua frequência novamente reduzida, antes da entrada em serviço dos eléctricos remotorizados (e recarroçados), até que o Verão de 1999 começou a trazer outro tipo de surpresas.

A 4 de Julho de 1999 a Carris anunciou que a carreira 18 passaria a ter terminal em Santo Amaro aos sábados à tarde e aos domingos e feriados, sendo criada uma paragem para servir o Calvário no início da Rua Leão de Oliveira. Por algum motivo houve quem achasse que a medida era provisória e para vigorar apenas durante o Verão, embora tal informação nunca tivesse sido tornada pública. No ano seguinte, a empresa levantou o véu sobre os seus planos: desactivar a linha da Ajuda, de longe a mais dispensável da rede (entretanto reduzida a cinco carreiras) e substituir o 18 integralmente por autocarros.

Sentimentalismos à parte, a ideia era perfeitamente compreensível. O percurso do 18 realizava-se por ruas largas, perfeitamente acessíveis a autocarros, que no virar do século eram já muito mais acessíveis para a população idosa da zona. Mais, o 18 não tinha assim tantos passageiros devido ao crescimento do autocarro 60, que a 1 de Agosto de 2000 passou a fazer exactamente o percurso do eléctrico entre o Calvário e o Cemitério da Ajuda. A Carris reconhecia que havia bastantes pedidos para manter o eléctrico a circular, mas contrapunha que esses pedidos vinham de gente que não utilizava a carreira; e que a sugestão da empresa de aumentar o preço dos bilhetes para garantir a sua viabilidade económica tinha sido liminarmente recusada. Depois havia todas as questões operacionais: o percurso do 18 na Avenida 24 de Julho, sobreposto ao eléctrico rápido, condicionava a circulação daquele na plenitude do seu potencial; e as frequentes interrupções de serviço por problemas na linha tornavam o autocarro muito mais fiável para os passageiros. Ainda assim, os defensores do 18 mantiveram-se firmes.

A guerra estava aberta, e foi feia. A 1 de Setembro de 2000, o percurso do 60 foi novamente alterado e o 18 deixou de ter companhia entre a Rua Dom Vasco e o Cemitério da Ajuda; mas nem por isso a carreira ganhou passageiros. A frequência da carreira foi reduzida para vinte minutos durante todo o dia, mas mesmo assim os eléctricos passaram a andar mais vazios do que dez anos antes; e de cada vez que a Carris voltava a levantar a sugestão de eliminar a carreira multiplicavam-se os protestos e a oposição. A Câmara Municipal, dentro duma filosofia populista, viu nesta guerra uma possibilidade de ganhar votos e juntou-se ao povo na oposição à “ditadura” da empresa. Mas o despropósito dos protestos ficou bem patente numa triste reunião para discutir o futuro do eléctrico, organizada pela Junta de Freguesia de Alcântara, a que compareceram dois representantes da Carris, um da Junta de Freguesia e um morador.

Com pequenas perturbações de terminal devido às obras na zona, o 18 foi sobrevivendo sem grandes alterações durante os primeiros anos do século, até que a crise e os cortes impostos pelo Governo trouxeram o futuro da carreira novamente à baila. Em mais uma iniciativa perfeitamente surreal, criou-se um movimento pela defesa do 18 que apelou à utilização da carreira, juntando umas dezenas de protestantes na viagem das 18h do Cemitério da Ajuda no dia 18 de cada mês – levantando apenas a questão de como é que se defende o futuro de uma carreira que precisa de uma manifestação convocada para transportar passageiros à hora de ponta. Ainda assim, nem as intervenções directas de governantes conseguiram eliminar a linha da Ajuda, que em Abril de 2011 viu a sua frequência de dias úteis (mais) reduzida, em Setembro do mesmo ano viu o seu serviço de fim-de-semana desaparecer, e em Março de 2012 foi definitivamente encurtada ao Cais do Sodré – com uma frequência ainda mais reduzida.

Hoje o eléctrico 18 é uma boa alternativa para quem quer viajar sentado (ou mesmo ocupando dois lugares) à hora de ponta. À beira de completar cem anos, os seus defensores nem com a data de início da carreira acertam; e entre todos os mitos que por aí circulam, é fácil de identificar o maior: a de que a carreira tem qualquer utilidade.

24 de julho de 2013

9: O eléctrico do Poço do Bispo

É interessante constatar que os projectos de restruturação da rede da Carris a propósito da inauguração da Ponte sobre o Tejo foram submetidos a aprovação superior apenas quatro dias antes da sua entrada em vigor. A 20 de Julho de 1966, a empresa requereu um conjunto de alterações decorrentes da eliminação da linha de eléctricos entre o Largo de Alcântara, o Largo do Calvário e a Rua Leão de Oliveira que entraram em vigor a 24 de Julho; e no “pacote” incluía-se a eliminação duma carreira icónica que nada tinha a ver com o resto das alterações: o 9, bem conhecido como o clássico eléctrico do Poço do Bispo.

A história do 9 é mais uma daquelas que está mal contada por toda a parte. A linha do Poço do Bispo foi inaugurada logo em 1901, substituindo o antigo serviço de carros americanos, mas a carreira 9 só começou o seu serviço quase vinte anos depois. Antes, essa ligação ligação era assegurada por uma interessante carreira – o 3 – que, numa lógica que se perdeu durante a I República, atravessava a Baixa ligando a zona oriental da cidade ao Campo Pequeno e servindo dois aglomerados residenciais em ambos os extremos.

Os horários do início do século dizem-nos contudo que praticamente desde o início existiram viagens entre o Rossio e o Poço do Bispo, conquanto enquadradas no serviço da carreira maior. Foi entre 1914 e 1922 que a carreira do Campo Pequeno foi encurtada à Rua dos Caminhos de Ferro e o serviço para o Poço do Bispo passou a ser assegurado pelo novo 9 – a segunda carreira desse número, embora à data a utilização dos números fosse quase exclusivamente para uso interno da Carris.

O eléctrico do Poço do Bispo foi sempre um dos mais populares de toda a rede, por motivos ligados também ao facto de ser a única carreira servindo todo o troço entre os Caminhos de Ferro e o terminal. Sendo eixos já então densamente povoados, o 9 era o único transporte que permitia a uma larga camada de população trabalhadora deslocar-se para o centro da cidade; e a carreira, para além de uma frequência elevada, tinha ainda reforços extraordinários em número substancial. Durante o período de funcionamento da carreira do Campo Pequeno – que com a divisão passou a circular apenas aos dias úteis – os carros do 9 eram directos, sendo cobrada a tarifa além dos Caminhos de Ferro para os passageiros que entrassem no Rossio. Para além dos extraordinários, o 9 beneficiava ainda do sistema de carros operários, introduzido com sucesso em 1935 (depois de algumas tentativas frustradas nas décadas anteriores, mas que não contemplaram esta carreira), permitindo aos seus passageiros realizar uma viagem de ida-e-volta por metade da tarifa regular.

Apesar da sua elevada procura, o 9 era talvez a carreira que mais mal funcionava na primeira metade do século XX. Para isso contribuíam as sistemáticas inundações em todo o eixo ribeirinho interior, que durante os meses de Outono frequentemente interrompiam a circulação além de Xabregas – ou mesmo além dos Caminhos de Ferro – durante dias ou mesmo semanas a fio.

A restruturação da rede de eléctricos na Baixa decorrida entre 1945 e 1950 só piorou as coisas para os utilizadores do 9. A carreira foi encurtada primeiro à Rua da Prata, a 1 de Abril de 1945, deixando de entrar no Rossio, enquanto os seus muitos carros extraordinários passaram a terminar no topo ocidental da Praça do Comércio. A 13 de Outubro de 1946, o serviço nocturno da carreira foi reprolongado ao Rossio, mas os carros extraordinários foram encurtados ao topo oriental da Praça do Comércio, tornando os transbordos para o eixo ocidental bastante menos práticos. (Pelos critérios actuais, que prevêem transbordos entre paragens situadas em extremos opostos do Marquês de Pombal, esta alteração pode parecer insignificante; mas em 1946 era bastante relevante, já que o encurtamento do serviço eliminava não uma, mas duas paragens do 9 na Praça do Comércio: a do lado ocidental e a paragem do lado Norte, comum com as restantes carreiras.) A 1 de Julho de 1947, todos os carros da carreira passaram a usar esse terminal, deixando de haver ligação directa entre o lado oriental da cidade e o Rossio; e finalmente, a 30 de Dezembro de 1950, os carros extraordinários foram novamente encurtados à nova raquete da Rua da Alfândega – gerando um coro de protestos maior que todos os anteriores reunidos e diminuindo drasticamente a sua procura, já que o 9 era uma carreira usada quase sempre para passageiros que efectuavam depois transbordo para outras.

Com a maior disponibilidade de carros após o final da II Guerra Mundial, o 9 atingiu frequências de seis minutos aos dias úteis e oito a nove à noite, excluindo as viagens extraordinárias. Em 1950, a carreira ganhou um companheiro até Xabregas, com o prolongamento do eléctrico 16 até à raquete aí existente. Durante a década seguinte, a carreira viu-se igualmente reforçada por diversas novas carreiras de autocarros complementando o seu percurso e fornecendo alternativas aos passageiros dos pontos intermédios, dos bairros adjacentes de Chelas, Marvila e da Madre de Deus, e das zonas além-terminal do Braço de Prata e Vale Formoso de Baixo. Assim, a inauguração dos autocarros 24, 25, 28 e 34 trouxeram algum desafogo ao eléctrico do Poço do Bispo – que continuou contudo a circular sozinho pelo eixo interior, apenas reforçado até Xabregas pelo autocarro 24 a partir de 1961.

A eterna discussão dos transbordos levou a que, em 1954, a Carris decidisse finalmente prolongar o 9, voltando todos os carros a circular pela Praça do Comércio, e estabelecesse um novo terminal em Santos. Desta forma, os passageiros para a 24 de Julho de para o Conde Barão passavam a poder chegar directamente ao seu terminal, havendo ainda ligação directa aos eléctricos e autocarros do eixo de Belém. O prolongamento fez-se duma forma muito estranha e única na história da rede: do Corpo Santo, os carros seguiam alternadamente pelo Cais do Sodré ou pela Rua de São Paulo, não havendo contudo distinção de carreira entre uns e outros. (Ocasionalmente, a própria Carris fala no 9 e no 9A, mas esta designação não parece ter sido oficial – nem é claro qual seria o 9 e qual seria o 9A.) A razão para esta solução parece ter sido, em primeira instância, evitar a necessidade de realizar manobras de inversão em Santos, onde a intensidade de carros eléctricos tornaria o uso de agulhas complicado.

Se o prolongamento da carreira trouxe benefícios aos passageiros, a sua esquizofrenia entre Santos e o Corpo Santo gerou novas dores de cabeça. A localização das paragens no Largo de Santos levou várias voltas, sendo motivo de diversas trocas de opiniões entre a Carris e a Câmara, com vista a garantir dois objectivos: primeiro, que os dois terminais do 9 (ah, pois, havia um terminal de cada lado da rua!) estivessem suficientemente próximos para permitir aos passageiros para quem a variante de percurso era irrelevante optar pelo que partisse primeiro; segundo, que os passageiros de curto percurso tivessem facilidade em optar por outra carreira com o mesmo trajecto. Como resultado, a carreira 9 acabou por ficar com várias paragens no Largo de Santos: uma na Avenida 24 de Julho, antes das agulhas ligando as linhas ribeirinhas interior e exterior (partilhada a partir de certa altura com as duas circulações da Estrela e São Bento via Cais do Sodré), e outra no jardim, novamente mesmo junto às agulhas idênticas na linha interior, próximo das carreiras de autocarros para o Cais do Sodré.

Entretanto, no final dos anos cinquenta o terminal de eléctricos do Poço do Bispo ganhou um novo ocupante, com a criação (também ela quase epopeica) da carreira 27. A diversificação da oferta parece ter aliviado o serviço do 9, já que os passageiros com destino ao centro da cidade passaram a poder optar por uma variante pela Praça do Chile. Ainda assim, partilhando o troço entre a Rua da Madre de Deus e Xabregas com o 9, o 27 tornou-se também uma vítima dos problemas de circulação que já afectavam o 9 devido às sistemáticas inundações na Rua de Xabregas.

O pedido de fusão da carreira 9 teve vários motivos na sua génese. O pretexto foi o da reformulação da rede no nó de Alcântara-Terra, mas qualquer observador reconhecerá que as duas carreiras afectadas – o 9 e o 16 – não passavam na zona. Na realidade, houve dois motivos principais. Em primeiro lugar, a progressiva redução da procura que se vinha notando desde 1962 justificava que a Carris criasse uma carreira única entre Belém e Poço do Bispo, beneficiando tarifariamente os passageiros de mais longo curso e reduzindo o número de veículos em circulação no troço entre Santos e Xabregas. Em segundo lugar, as manobras de inversão dos (muitos) carros do 16 em Xabregas causavam uma sistemática confusão no já de si complicado trânsito da zona, pelo que eliminar esse terminal (mantendo contudo a raquete para ser aproveitada para encurtamentos e extraordinários) trazia benefícios à própria circulação das carreiras da empresa. Mas mais curiosa é a justificação encontrada na correspondência oficial entre a Carris, a Câmara Municipal de Lisboa e a Direcção-Geral dos Transportes Terrestres a propósito da autorização da referida fusão: a eliminação do 9 é “para acabar com essa aberração”, referindo-se à co-existência de dois percursos diferentes para a mesma carreira.

A aprovação foi pacífica, e o número 9 desapareceu definitivamente da listagem das carreiras de eléctricos de Lisboa a 24 de Julho de 1966, em simultâneo com o 14, ao fim de uns modestos quarenta e poucos anos em uso. A linha do Poço do Bispo, essa, manter-se-ia em exploração durante mais vinte e cinco anos – sobrevivendo ao 9 por mais tempo do que aquele que lhe antecedera.